
É preciso reinventar o país, recuperar a economia, promover a reforma política, cuidar da Previdência. Difícil é achar um líder para fazer tudo isso
É Preciso mudar. É preciso fazer as reformas necessárias – as de sempre, que estão na ponta da língua de qualquer economista, empresário ou cientista político. É preciso dar um novo ânimo ao mercado, apaziguar o Congresso, promover a união nacional, engendrar um pacto que leve o país, enfim, ao crescimento. Sabemos, nós todos, das mazelas atuais e arriscamos diariamente a proposição de soluções que, ao fim e ao cabo, esbarram, inevitavelmente, em uma questão maior: haverá líderes capazes de conduzir esse movimento de convergência nacional? Alguém que simbolize, de fato, a mudança pedida nas ruas?
A resposta, infelizmente, é não. Ainda não, ao menos. O fenômeno do vácuo de lideranças não é exclusividade nossa, embora a situação do Brasil, nesse campo, pareça dramática e urgente. Uma pesquisa do World Economic Forum com 1.767 líderes – de empresas, governos, universidades e associações civis –, em todas as regiões do planeta, mostra que 86% dos entrevistados concordam com a afirmação de que há uma crise de liderança política, empresarial e mesmo religiosa. Para eles, a comunidade internacional tem fracassado na tentativa de endereçar alguns dos maiores temas globais nos últimos anos. Falhou em conduzir a economia global, que causou sérios problemas na Europa e nos Estados Unidos, falhou na questão da violência no Oriente Médio, falhou em combater a corrupção. Na China, 90% das pessoas disseram que corrupção é um problema. Na Índia, 83% apontaram preocupações em relação à desonestidade de seus líderes. Esse índice, no Brasil, chegou a 78% dos entrevistados.
A questão é: quais as competências necessárias para que um líder recupere a confiança da população? As respostas da pesquisa foram as seguintes: um olhar global, com estratégias que estejam alinhadas com a ordem econômica mundial; planos de longo prazo; capacidade de comunicação de forma transparente com a sociedade; prioridade em justiça social; responsabilidade e comprometimento com o crescimento financeiro; empatia; habilidade de execução e uma natureza colaborativa. Parece muita coisa. Mas por que não? Alguém em vista no Brasil com essas qualidades, ou pelo menos com algumas delas? Quem se habilita?
Michel Temer apresentou-se. Traz consigo um Plano para o Futuro, com três ou quatro medidas pontuais que, em tese, podem surtir algum efeito. Na economia, como diz o ex-ministro Antônio Delfim Netto, o que vale é a esperança: se você acreditar que daqui a dois anos vai crescer, o crescimento começa agora. O problema é que não dá para fazer muita coisa quando se tem meio mandato e um líder que carrega uma ficha política não exatamente imaculada, além de dúvidas sobre sua real capacidade em pavimentar o caminho para uma união nacional. Temer atuaria no interregno, numa República Tampão que, na melhor das hipóteses, serviria apenas como preparação do terreno para algum alívio em 2018.
Cabe aqui uma comparação entre o Brasil atual e o de 1992, quando do impeachment de Fernando Collor de Mello. A vitória da oposição está longe de ser a senha para unir o país. Há 24 anos, sem base parlamentar e com escassa interlocução na sociedade civil, Collor obteve apenas 38 votos a seu favor na Câmara e não ouviu clamor popular pela sua permanência – nenhuma voz arguindo fragilidades jurídicas no processo de impedimento. O Brasil o deixou só. A coalizão responsável pela destituição do presidente foi a mesma que ajudou, efetivamente, um vice-presidente anódino a reconstruir o país. “Itamar Franco sabia que a simplicidade dos gestos políticos, a humildade e a inapetência para se tornar o salvador da pátria poderiam levá-lo ao sucesso”, escreveu o jornalista Luís Costa Pinto, autor de reportagens que puxaram o processo de impeachment de Collor, em um artigo para o El País. Temer não parece unir nem os que se aliaram em torno da saída de Dilma Rousseff e nem mesmo os que vestiram verde-amarelo nas ruas. “Caso busque a unanimidade em torno de si, ele não a encontrará. E ficará tentando dialogar com quem lhe imporá monólogos”, observa Costa Pinto. “Michel Temer será instado a dar opiniões e esgrimir soluções para o país nos campos da economia interna, das relações externas e da segurança pública, da saúde e do combate à corrupção. Terá cacife para isso?” A ver.
Ainda assim, mesmo que Temer não seja “impichado” com os avanços da Lava Jato ou com as análises do Tribunal Superior Eleitoral, mesmo que consiga montar uma equipe, domar o Congresso e fazer andar medidas pontuais que tragam algum alívio, a questão central permanece: que tipo de liderança teremos em 2018? Ou, por outra, que tipo de liderança queremos para 2018? No cenário atual, não parece haver ninguém – ainda que em eventual sucesso de Temer – capaz de seduzir ou ao menos surpreender a população. Para o cientista político e historiador Boris Fausto, esse vácuo de lideranças na política é reflexo da perda de representatividade dos partidos e sua consequente incompetência para formar quadros diferenciados. “O PSDB está enfraquecido, é um partido sem ideias, sem fisionomia, incapaz de fazer uma oposição à altura das expectativas. Não por acaso, suas lideranças estão despencando nos índices de aprovação popular. O PT idem. E o PMDB é um balaio. Até que ponto essa bancada, que é grande, sustentará com certa homogeneidade o governo Temer? Realmente, não temos organizações com a forma e a representatividade que tivemos no passado”, diz. A votação de 17 de abril na Câmara dos Deputados expôs esse fato em cadeia nacional. Ao despreparo e destempero dos nobres deputados, soma-se a triste estatística de que metade da casa está sendo investigada por corrupção . Pior para o Brasil. Que pelo menos isso sirva de alerta para a população nas próximas eleições.
A própria presidente Dilma Rousseff é produto dessa estiagem de líderes. Não era a primeira e nem a segunda opção de Lula para a sucessão – José Dirceu e Antonio Palocci lideravam a fila até serem sepultados politicamente por denúncias de corrupção. A presidente não liderou, não formou grandes quadros nos ministérios, não definiu prioridades, não montou uma agenda para ocupar as discussões na Câmara e no Senado e não interagiu politicamente, nem com a sociedade. Ao não fazer tudo isso, legou ao Congresso a definição de sua própria agenda. Deu no que deu. Criamos, enfim, um tipo de presidencialismo de coalizão que nem comanda, nem coaliza. O país ficou à deriva.
É possível que essa soma de incertezas indique o fim de um período histórico. O Brasil, carregado por todos esses impasses, estaria concluindo um ciclo de poder, inaugurado com a redemocratização, em 1985. Entraríamos, segundo essa hipótese, em uma espécie de Novíssima República. É o que se espera das encruzilhadas, que elas nos forcem a optar por um novo caminho. O sociólogo Demétrio Magnoli aposta nessa virada de chave, mas com uma ressalva: “Ainda vivemos um período de declínio da fase anterior”, diz. “É por isso que o cenário ainda parece turvo demais.”
Para ingressar na curva ascendente, a fase da reconstrução, é imprescindível considerar erros e acertos do passado, tanto recente como remoto. Princípios básicos de mercado, firmados por aqui desde o Plano Real, em 1994, não podem mais ser burlados em nome de bruxarias macroeconômicas de qualquer sorte. Paralelamente, é necessário reconhecer a premência dos programas sociais e dotá-los de mecanismos que persigam a eficácia de forma obstinada. Não basta que eles existam, é preciso que funcionem. Tornou-se evidente também que o saldo atual dos brasileiros não suporta todos os dispêndios fixados em lei pela Constituição de 1988. Daí, a urgência das reformas.
Aqui, porém, volta a questão: que líder conduzirá esse processo? “Se entrarmos em uma condição de democracia normal, madura, ela exigirá uma pessoa que tenha uma força simbólica, claro, mas sem projetos personalistas, demagogos. Isso requer, obviamente, a presença de instituições atuantes, de um Congresso sério. A Europa, por exemplo, funciona muito bem hoje sem as lideranças carismáticas, porque as instituições são fortes”, diz Boris Fausto. Nesse cenário, o professor não descarta a ascensão de nomes como o de Marina Silva, uma terceira via com biografia limpa, a maior urgência do país nestes tempos de Eduardo Cunha e companhia. “Ela pode montar um bom ministério. Do ponto de vista da economia, parece que criou juízo. Além disso, também dialoga bem com a massa e tem compromisso com questões fundamentais, como a ecológica”, diz. “O ponto de interrogação é o seu comportamento um tanto retrógrado. Mas é o tal negócio: o líder dos sonhos não existe.”
Há, na verdade, outro grande ponto de interrogação em Marina Silva: sua capacidade de erguer uma ponte sólida com o Congresso. Sem isso, como já se viu, não se governa. “Resta saber, caso ela de fato prospere, se conseguirá construir essa base com a parte saudável dos políticos ou vai preferir se arriscar na aventura de chegar ao poder sem isso”, afirma Magnoli. “Ou seja, a dúvida é se teremos a ‘Marina da Floresta’ ou a referência que o país necessita.”
O mundo vive hoje, na avaliação do cientista político Luiz Felipe D’Avila, autor do livro Caráter e Liderança – Nove Estadistas que Construíram a Democracia Brasileira, uma situação muito parecida com a dos anos 20, o período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. “Há uma safra de líderes medíocres, ao mesmo tempo em que os problemas são extremamente complexos”, afirma. Tanto naquele momento quanto agora, reina uma insatisfação com os partidos de centro. O equilíbrio proposto por essas siglas não foi capaz de resolver as questões atuais, então a população passa a defender ideias polarizadas. Abre-se espaço para soluções radicais, para os partidos de extrema direita ou esquerda. No passado, diz D’Avila, situações como essa facilitaram a ascensão do comunismo, do fascismo. “Hoje, vemos um candidato como o Donald Trump, que prega o ódio aos estrangeiros, com amplo destaque nas eleições americanas.” No Brasil, tem-se o crescimento da popularidade de um político como o Jair Bolsonaro (uma pesquisa do Datafolha mostra que o deputado teria, numa possível disputa presidencial, 23% dos votos dos eleitores com renda familiar mensal acima de dez salários mínimos). “O perigo, num momento de vácuo de liderança como o que temos agora, é a ascensão de populistas que minem a credibilidade das instituições.”
Há quem não veja o horizonte tão cinzento. “A ocasião propicia o aparecimento de certas lideranças”, diz o ex-ministro Antônio Delfim Netto. “Fernando Henrique Cardoso não se elegeria deputado federal. Foi suplente do Montoro. Quem poderia imaginar que, tendo uma oportunidade no Ministério da Fazenda, ele iria se transformar numa referência importante? O Lula é outro. Quem diria que chegaria aonde chegou com aquele sindicalismo de resultados?” O líder que emergirá da atual situação, segundo ele, é alguém com capacidade de aglutinar, de acomodar as coisas. O momento exige isso. Temer seria capaz de aglutinar? “Só vamos saber isso quando ele for capaz de aglutinar. O visconde de Tocqueville [o francês Alexis-Charles-Henri Clérel, pensador político e historiador] dizia o seguinte: ‘Você nunca pode julgar um regime, o único juiz imparcial é o futuro. O problema é que o futuro demora a chegar’.” Para Delfim, só se vê o líder depois que a história acabou. “O Churchill fez muita besteira antes da guerra. Mas quando apareceu a oportunidade, surgiu uma força que estava dentro dele para cumprir aquele papel. É o instante, a ocasião, que faz o líder.”
Uma pesquisa recente do DataFolha indica que, se as eleições fossem hoje, Lula – ainda que bombardeado pela Lava Jato – lideraria a corrida no primeiro turno. “O Lula é uma inteligência privilegiada, não adianta querer discutir”, diz Delfim. “Ele tem um senso pragmático, o poder de aglutinar, uma capacidade de saber que somente pela negociação você pode ajeitar as coisas. Lula é o único sujeito capaz de selar o PT e dar uma volta no pátio com ele.” De qualquer maneira, no desenho da Novíssima República que se anuncia, talvez haja espaço para alguém com o poder de aglutinação de um Luiz Inácio da Silva, mas com um perfil não populista. Dito de outra forma, alguém mais afeito à gestão e menos aos palanques. Quase um anti-herói, em relação ao conceito que fazemos hoje do grande líder, o Messias, o estadista.
O canadense Henry Mintzberg, professor de negócios e autor de diversos livros sobre gestão, é um dos principais críticos da fixação aos líderes. Em artigo para o jornal Financial Times, ele anota: “É claro que a liderança pode fazer a diferença. Mas é frequente que se torne uma tautologia: mostre à imprensa uma companhia de sucesso e ela lhe mostrará um grande líder. É tão mais fácil do que tentar entender o que realmente aconteceu”. Mintzberg recorre ao exemplo mítico do renascimento da IBM, nos anos 90 sob o comando de Louis Gerstner. De acordo com relatos internos, a IBM entrou no negócio eletrônico porque um programador levou a ideia a um gerente e este juntou um grupo que a implementou. “Qual foi o papel de Gerstner?”, escreveu Mintzberg. “Quando ele finalmente ouviu a iniciativa, encorajou-a. Em vez de dar direção, apoiou a direção de outros.” Significa dizer que o líder seja desnecessário? Não. O problema é que muitas vezes atribuímos a ele uma visão e um protagonismo irreais. Isso explica nossa tendência em buscar nas urnas os salvadores da pátria, quando talvez devêssemos procurar maestros – alguém que expresse algo mais substantivo, plural. A mágica de um comandante reside na habilidade em conduzir equipes, projetos, ideias. De novo: quem se habilita?
Fonte:Época