COM O CEO DOENTE E PRESSIONADA POR CONCORRENTES COMO A APPLE E A CHINESA XIAOMI, A SAMSUNG ESPERA QUE O SEU NOVO SMARTPHONE, O GALAXY S6, RESOLVA A CRISE QUE AMEAÇA O SEU FUTURO
A Samsung foi fundada em 1938 como uma empresa de importação e exportação. Em 1969, começou a produzir eletrônicos por meio da subsidiária Samsung Electronics. Por décadas, a divisão fabricou TVs, lavadoras e aparelhos de ar condicionado vendidos por outras marcas. Isso até que Lee Kun-hee, filho do fundador, Lee Byung-chull, assumiu o comando da empresa, no fim dos anos 80.
À época, ele resolveu fazer um tour global para avaliar a qualidade de seus produtos. Ao longo do périplo, descobriu que eram considerados umas porcarias. Semanas depois, Kun-hee convocou o comando da empresa para uma reunião em um quarto de hotel em Frankfurt. Ali mesmo, anunciou que promoveria uma revolução em suas linhas de produção. “Troquem tudo, menos as suas mulheres e os seus filhos”, disse aos executivos. O episódio tornou-se um mito dentro da corporação. O discurso foi transcrito em livro, que virou uma espécie de texto sagrado da gigante coreana. Pode parecer maluquice, mas a sede da empresa, em Suwon, na Coreia do Sul, abriga uma réplica do quarto de hotel onde Kun-hee fez o seu discurso.
Pois chegou o momento de algum líder da companhia subir novamente no palanque. No último trimestre de 2013, a Samsung Electronics registrou a primeira queda no lucro em dois anos. Até então, porém, não havia motivo para preocupação. A companhia estava prestes a colocar no mercado o Galaxy S5, seu smartphone mais poderoso. O lançamento ocorreu durante o Mobile World Congress, em Barcelona, em fevereiro de 2014. Ele marcava uma tentativa da coreana de se distanciar do iPhone, até então o maior rival, e ditar uma nova tendência no mercado. O aparelho tinha corpo de plástico, o que o tornava resistente à água. A bateria era removível e havia um espaço para cartões de memória SD. O telefone da Apple, em contrapartida, não era à prova d’água, não tinha entrada para cartões e a bateria era soldada.
Tudo parecia pronto para mais um recorde de vendas. “Só teremos sucesso se os clientes nos escolherem”, disse JK Shin, o CEO da Samsung Mobile durante a apresentação do S5. Hoje, a frase soa como premonição de um pesadelo. O gadget vendeu 40% menos do que o seu antecessor, o S4. Os consumidores reclamavam do acabamento de plástico, que dava ao celular um aspecto malcuidado, e das modificações que a Samsung fez no sistema operacional Android. O Galaxy S5 deveria ser uma boia. Acabou sendo uma pesada âncora.
Os números recentes não são mais animadores. Longe disso. Em 2014, o lucro da Samsung Electronics foi 27% menor que no ano anterior. Em 2015, o ritmo mambembe se manteve: no primeiro trimestre, a cifra caiu de novo 27%. E esse foi o terceiro trimestre seguido de queda. Na China, a Samsung deixou a liderança dos eletrônicos para ocupar o terceiro lugar, após as vendas despencarem 53% no primeiro trimestre de 2015. No geral, a companhia ainda vende mais smartphones do que a Apple. Mas como a margem também despencou (de 18%, em 2013, caiu para 7% no ano seguinte), o lucro da companhia sofre um bocado.
S de salvação?
Para reverter essa situação, a Samsung apostou grande parte de suas fichas em um novo produto – o celular Galaxy S6. Ele chegou às prateleiras, em abril, com câmera de 16 megapixels, até 128 GB de memória e uma tela de 5,1 polegadas com alta definição. Essa versão do aparelho descartou todas as inovações problemáticas do modelo anterior. “O Galaxy S6 responde aos pedidos do consumidor e da indústria. É uma redefinição completa da linha Galaxy S”, afirma Hong Sang Cho, vice-presidente global e chefe de vendas da Samsung para a América Latina. O “novo” visual é semelhante ao do seu maior rival: lado a lado, o S6 e iPhone 6 parecem ter saído da mesma linha de produção. Para a empresa, as primeiras notícias do varejo têm sido animadoras. Mais de 15 milhões de S6 foram encomendados antes do lançamento, um recorde. Especialistas já o chamam de o “maior rival do iPhone 6”.
O sucesso do telefone será decisivo para a companhia. Os smartphones são a maior fonte de renda da Samsung Electronics, responsável por até 80% do lucro anual de todo o conglomerado, que abrange atividades tão diversas quanto hotéis de luxo, parques de diversão, hospitais e seguros de vida. Assim, o futuro de uma empresa com mais de 489 mil funcionários espalhados pelo mundo e receita na casa dos US$ 200 bilhões equilibra-se sobre um celular pouco maior que um passaporte.
Espremida pelos dois lados
O principal problema para o S6 é a disputa cada vez mais acirrada em todos os segmentos do mercado de celulares. Desde 2012, a Motorola e os fabricantes chineses, como a Xiaomi e a Huawei, começaram a ganhar mercado vendendo smartphones tão poderosos como os da Samsung, mas pela metade do preço. Para conseguir essa façanha, a Xiaomi, por exemplo, só vende seus produtos pela web. Assim, tem gastos menores e repassa essa vantagem na forma de desconto para os clientes. Fundada em 2010, a empresa começou a apresentar uma musculatura impressionante no ano passado. Em 2014, a Xiaomi vendeu mais de 61 milhões de celulares da sua linha Mi, rival direta do Galaxy. No fim do ano, virou líder na China, o maior mercado do planeta. A coreana, por sua vez, estacionou.
Além da pressão pelo preço, promovida pelos chineses, a Samsung sofre forte ataque da Apple, no topo da pirâmide dos consumidores. Ao lançar os iPhones 6 e 6 Plus, a empresa liderada por Tim Cook criou uma demanda inédita por smartphones com telas grandes. Com isso, fez esse segmento mais do que triplicar de tamanho em um ano. Em 2014, só 6% dos celulares vendidos nos Estados Unidos tinham tela maior do que 5,5 polegadas. Em 2015, já perfazem 21%, segundo dados da consultoria Kantar. A Samsung, que tem uma linha dedicada aos grandões desde 2011, chamada Galaxy Note, não se beneficiou em nada dessa tendência, diz a analista da Kantar Carolina Milanesi. A Apple vendeu 74,5 milhões de iPhones nos três primeiros meses de 2015, um recorde. Se a empresa atingiu um lucro de US$ 18 bilhões, o maior da história do capitalismo, o grande responsável pela façanha foi o iPhone 6, o modelo mais vendido no período.
A troca de guarda
O mau momento da Samsung pareceria improvável para quem analisasse o mercado de telefonia móvel em 2007. Naquele ano, a Apple havia promovido um terremoto no setor ao lançar o iPhone. Quase todas as fabricantes sucumbiram ao amontoado impressionante de inovações reunidas no produto apresentado por Steve Jobs. Menos uma. Enquanto a Motorola, a Nokia e a BlackBerry afundavam, a Samsung reagiu. Ela inundou as lojas com dezenas de smartphones, abriu pontos de venda por todo o mundo e, com uma estratégia que misturava rapidez para lançar produtos e um investimento agressivo em marketing, tornou-se a maior fabricante de celulares em 2012.
Foi um feito. Impulsionada pelo sucesso da linha Galaxy, a Samsung Electronics, divisão responsável por telefones, tablets, semicondutores, LCDs e laptops, valorizou o grupo de empresas que atua sob o nome Samsung. O conglomerado quase triplicou de tamanho em sete anos. Tudo graças aos smartphones. No ápice de sua ascensão, a Samsung tornou-se ainda a maior empresa de tecnologia do mundo em receita. Faturava mais de US$ 200 bilhões anuais. Nem mesmo a Apple parecia páreo.
Um problema para a recuperação da Samsung é que Lee Kun-hee, o CEO do “esqueçam tudo, menos mulheres e filhos”, não está mais disponível para liderar uma segunda reviravolta. Desde maio do ano passado, quando sofreu um ataque cardíaco, ele passa os dias em um hospital (construído e operado pela Samsung) na rica região de Gangnam, em Seul. Quem terá de conduzir a companhia nestes dias difíceis, ainda que não de forma oficial, é seu único filho, Lee Jae-Yong, atual vice-presidente do conselho. Oficialmente, a gigante coreana não comenta o estado de saúde do seu principal executivo, ainda que tenha ações abertas na Korea Exchanges, a bolsa da Coreia do Sul. Por isso, a falta de transparência sobre o plano de sucessão na Samsung aumenta a desconfiança dos investidores sobre Yong.
Ele não é um executivo que possa ser definido como rodado. Não trabalhou em outro lugar que não a empresa da família. Aos 23 anos (hoje tem 46), já era vice-presidente de planejamento e foi escalando a hierarquia do conglomerado até atingir a posição de diretor de operações, em 2010. Formado em Harvard, não tem o carisma do pai e é bastante discreto – suas entrevistas são ainda mais raras do que as de Lee Kun-hee, que já era avesso a contatos com a imprensa.
A força de uma cultura
A presença física do pai pode fazer falta, mas o fato positivo é que Yong se beneficiará da cultura construída por seus antecessores. Ela preza a rapidez dos processos de decisão e a dedicação total ao trabalho – ela parece não ter limites na Samsung, e a obediência aos chefes tem um toque militar. Foi a partir desses elementos, por exemplo, que a Samsung dominou o mercado de componentes para eletrônicos. Na década de 80, os líderes do setor de memórias eram japoneses ou americanos. O fundador da Samsung, Lee Byung-chull, acreditava que dominar o setor seria essencial para o sucesso da companhia.
Os primeiros chips de memória fabricados pela coreana eram tão ruins que nem mesmo as outras divisões da Samsung queriam usá-los. O fundador insistiu. Contratou engenheiros japoneses e coreanos treinados nos Estados Unidos, que ganhavam salários cinco vezes maiores que o do próprio dono da empresa, para ensinar os funcionários da Samsung a produzir memórias de boa qualidade. Os técnicos trabalhavam tanto que era comum vê-los dormindo debaixo de suas mesas na sede da empresa, em Suwon.
A fábrica para esses componentes, normalmente construída em três anos por outras companhias, ficou pronta em seis meses. Em três anos, a divisão Samsung Semiconductor chegou lá: conseguiu ombrear com a tecnologia que havia demorado décadas para ser desenvolvida pelos rivais. Em 1987, a divisão havia coberto o prejuízo acumulado de US$ 300 milhões dos anos anteriores e começou a dar lucro. Seis anos depois, quando o Lee filho fez o discurso em Frankfurt, a Samsung já era a líder no setor de memória, posição mantida até hoje. Lee filho aplicou, com sucesso, a mesma lógica para outros componentes: telas LCD, memória flash e microprocessadores.
A lógica da “crise eterna”
Como produzir memória é uma atividade muito cara (as fábricas custam bilhões de dólares) e com uma margem que despenca em poucos anos, Lee Kun-hee imprimiu uma mentalidade de “crise eterna” na empresa. Se a divisão de memória não produzisse um produto melhor, mais barato e em um espaço de tempo menor que a concorrência, a Samsung quebraria. Tanto dinheiro tinha sido gasto na fábrica que não havia reserva suficiente para prolongar a vida da empresa se as memórias não vendessem. A expressão “pali pali” (“rápido, rápido”, do coreano para o português), usada na Coreia do Sul para sintetizar o senso de urgência do seu povo, virou o mantra dos negócios na Samsung. A integração entre as divisões que criam os eletrônicos e fabricam peças resultou em um ciclo de desenvolvimento mais rápido. Enquanto os rivais levam até 18 meses para criar, fabricar e distribuir um celular, a Samsung faz o mesmo em seis meses e com um preço, não raro, menor. Parte dessa celeridade é resultado da tal disciplina militar. “O CEO decide qual a direção que a companhia seguirá e não existe discussão: a ordem é seguida”, diz Sea-Jin Chang, autor do livro Sony vs Samsung. A integração vertical entre as divisões, a alta velocidade e os custos baixos levaram a Samsung ao posto de maior fabricante de celulares do mundo.
Antes do iPhone, era difícil distinguir um celular da Samsung de gadgets de outras marcas expostos em uma vitrine. Até então, a coreana apostava em inovações para ganhar espaço das então líderes Motorola e Nokia, como tela colorida, sem grande efeito. Quando a Apple mudou as regras do setor com o iPhone, foi ela quem soube reagir mais rapidamente ao novo cenário. Enquanto as líderes tinham dificuldades para achar componentes, a Samsung lançou, em junho de 2009, a linha Galaxy, protagonista da sua ascensão no setor.
O fato é que, quando existe uma tendência tecnológica clara no mercado, a empresa coreana usa a velocidade da sua estrutura integrada e a produção própria de componentes para ganhar mercado rapidamente. É o que o analista de telecom Horace Dediu chama de comportamento do “seguidor rápido”. Ocorre que essa correria nem sempre dá certo. Quando o burburinho sobre relógios inteligentes começou a esquentar, a Samsung já havia lançado o Galaxy Gear, um ano e meio antes do Apple Watch. O Gear, porém, já parece esquecido. Não chegou ao mercado no momento correto.
A Samsung foi a empresa que mais se beneficiou da transição dos celulares mais simples para os smartphones. A partir de 2009, quando o cliente ia à loja, a maioria das opções na vitrine era dela. A estratégia foi especialmente feliz em países em desenvolvimento, onde os preços dos produtos da Apple são proibitivos. É o caso do Brasil. Em 2012, a coreana tirou a liderança local da Nokia, que ocupava o posto desde 2004, e não parou mais de subir. No começo de 2013, atingiu seu ápice: 55% dos celulares vendidos no Brasil eram da marca coreana. Dois anos antes, a participação era de 17%, segundo a consultoria IDC. No mundo todo, a participação saltou de 3,3% em 2009 para 39,6% em 2012, ao virar líder global.
Apple: parceira, rival e inspiração
Depois de conquistar o reino dos celulares baratos, a Samsung resolveu disputar o restrito, porém lucrativo, setor dos smartphones de luxo. Foi então que, em junho de 2010, lançou o primeiro Galaxy S, com tela sensível ao toque e sistema operacional Android. O aparelho se transformou no rival “oficial” do iPhone. A guerra entre os dois modelos, além de concentrar quase todo o lucro do setor de smartphones desde 2009, segundo a consultoria Canaccord, também embolou a relação entre a Apple e a Samsung. Antes da disputa, ambas eram parceiras comerciais. Alguns componentes do iPhone, como a memória e o processador, eram produzidos pela coreana. Mas o Galaxy S fez delas rivais diretas. Isso sem contar com o fato de que cada lançamento de um Galaxy S era acompanhado por comentários sobre suas semelhanças com o celular da Apple.
As similaridades eram tantas que, a partir de 2011, a Apple processou a Samsung em nove países, entre eles Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão, alegando dezenas de infrações de patentes. Como produzia componentes do iPhone, a Samsung tinha acesso privilegiado aos detalhes técnicos do seu principal rival. No ano seguinte, a Corte Americana de Apelações decidiu que a Samsung infringiu patentes em 14 produtos e deveria pagar uma multa de US$ 930 milhões. Ficou barato: só no trimestre anterior ao veredicto, o lucro da Samsung havia sido cinco vezes maior do que a multa. Como o imbróglio ainda está em tramitação, o valor da pena deve mudar. Mas, mesmo que a cifra fique maior, a conclusão será a mesma: a Samsung sairá no lucro.
Um plano B
O prédio da divisão de mobile da Samsung Electronics, chamado de R5, quase não chama a atenção na sede da empresa, em Suwon. A construção é mais uma entre diversos parques e canteiros de obra no campus da empresa, chamado de “Digital City”. Espera-se que saia do R5 outro produto com potencial de tirar a Samsung da atual crise. Se o S6 não for o sucesso esperado, a empresa já tem algumas alternativas. Uma delas é a divisão criada em 2010 para vender laptops, impressoras, telefones e serviços corporativos diretamente para empresas e governos. “A Samsung já gerencia os serviços móveis de uma empresa, do conserto de celulares quebrados a plataformas de segurança. Ainda que trabalhem com outras plataformas, esse é um jeito de vender mais produtos da Samsung”, afirma William Stofega, analista de telecom do IDC. Até 2020, a divisão deverá responder por 30% da receita da Samsung, diz o diretor global de B2B, Sandeep Arya.
A solução para o dilema da Samsung, contudo, também pode vir de outro prédio, a 70 quilômetros da sede, menos chamativo do que o R5 e cercado por um canteiro de obras enlameado. Desde outubro, a Samsung constrói uma nova fábrica de semicondutores para celulares e tablets avaliada em US$ 15 bilhões. A linha de produção estará pronta em 2017 e poderá fazer memórias ou processadores. É o tipo de investimento que poucas empresas no mundo conseguem fazer. A Samsung é uma delas e tem outras duas plantas iguais. Em uma rara visita de jornalistas brasileiros ao local, NEGÓCIOS entrou em uma delas, em novembro de 2014, no distrito de Giheung, em uma viagem feita a convite da Samsung.
De uma janela lateral, observa-se que o grosso do trabalho é feito quase que majoritariamente por robôs. Eles correm em trilhos instalados no teto e descem até as máquinas fixadas no chão para conduzir os materiais básicos, como o silício, para pontos específicos do processo de fabricação de um chip. As poucas pessoas que compartilham o ambiente usam roupas especiais de proteção, como astronautas. É de uma fábrica como essa que saem os chips usados por rivais. Quase um terço dos chips do iPhone 6, por exemplo, é produzido pela Samsung. Com o investimento bilionário na nova linha, a companhia adota uma estratégia que, ironicamente, pode até se beneficiar da ascensão de concorrentes, como a Apple e a chinesa Xiaomi. Só que, nesse caso, a marca coreana não irá prevalecer. A empresa, nessa hipótese, retornaria aos tempos pré-Lee Kun-hee, o líder que mudou a companhia no fim dos anos 80. Agora, caberá a seu filho, Lee Jae-Yong, evitar que os dias dourados não fiquem para trás.
Fonte: Época negócios