TALVEZ VOCÊ NÃO AS CONHEÇA, MAS HÁ UM CONJUNTO DE COMPANHIAS PARA O QUAL O TERMO TURBULÊNCIA ECONÔMICA NÃO TEM FEITO SENTIDO
Coisas de um gigante continental. Enquanto parte da economia do Brasil mergulhou em um baita buraco, há um conjunto de empresas para as quais o termo crise não faz sentido. Essas companhias compartilham características: ficam fora do eixo Rio-São Paulo e são desconhecidas muito além de suas áreas de origem. Faturam, no entanto, um dinheirão – são bilionárias (literalmente) em receita.
A rede de farmácias PanVel, por exemplo, faturou R$ 2 bilhões em 2014. Com 320 lojas em 80 cidades de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, espera aumentar o faturamento em 15% em 2015. Esse percentual, acredite, é a média anual de crescimento da PanVel desde 1996. O segredo? “Essas empresas são enxutas, têm gestão eficiente e sabem operar em mercados sensíveis a preço”, diz Paulo Furquim, professor do Centro de Pesquisas em Estratégia do Insper.
Há mais. Elas mantêm um relacionamento com os clientes e os fornecedores muito mais próximo do que grandes conglomerados ou multinacionais. “Essas companhias entendem a fundo o mercado local e conseguem boas negociações, porque personalizam a relação com os parceiros”, acrescenta Furquim. No fim das contas, elas podem ser comparadas a empresas-cactos, pois a genética as favorece – parecem capazes de sobreviver com menos água.
O que se pode aprender com elas? Leve em conta as seguintes práticas: 1) elas aproveitam os espaços deixados por empresas com atuação nacional – com a vantagem de conhecer a fundo o público local; 2) investem em inovação, mesmo que sem processos formais; 3) para cada tipo de negócio, têm um tipo de consumidor como alvo e não atiram para todos os lados; e 4) fazem da gestão familiar uma vantagem, reduzindo, por exemplo, a burocracia na tomada de decisões.
Entre os líderes dessas empresas o otimismo ainda impera. Eles esperam um crescimento no faturamento acima de dois dígitos neste ano. Para o consultor Márcio Roldão, faz sentido. Estar fora dos grandes centros pode ser uma vantagem competitiva neste momento. “Por terem atuação local, a tendência é que as empresas sejam mais flexíveis”, diz ele. “Essa característica as ajuda a se adaptarem melhor a um mercado que muda muito rápido.” No entanto, há quem acredite que essas companhias, ainda que bilionárias, podem passar por perrengues no médio prazo. O ciclo de crescimento pelo consumo, no qual elas surfaram, está se exaurindo. “Os negócios que irão se destacar nos próximos anos serão aqueles que investirem na melhora da produtividade e na internacionalização”, diz Furquim, do Insper.
Conheça, a seguir, quatro exemplos de companhias cuja resistência à crise pode trazer lições preciosas.
PanVel (Porto Alegre, RS)
Rede de farmácias
Faturamento em 2014: R$ 2 bilhões
Estimativa de crescimento em 2015: 15%
Funcionários: 5,7 mil
Onde atua: Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina
O equilíbrio entre conservar e inovar
A rede de farmácias PanVel nasceu em 1967, após a união das duas maiores redes do Rio Grande do Sul – Panitz e Velgos – e da distribuidora Dimed. Ela é uma empresa familiar antenada. Julio Mottin Neto, vice-presidente de marketing e filho do CEO da PanVel, diz adotar o critério de crescimento apresentado por Jim Collins em seu livro Vencedoras por Opção: constante, sem grandes saltos de crescimento, mas sustentado por um longo prazo.
Para isso, a PanVel tem sido conservadora no lado financeiro e inovadora em produtos e parcerias. “Não damos o passo maior do que a perna e nunca tivemos um ano de prejuízo na nossa história”, diz Mottin Neto. A empresa também não costuma recorrer a financiamentos externos. Só investe quando tem dinheiro no caixa para isso. A exceção se deu recentemente, quando a PanVel desembolsou R$ 100 milhões em um novo centro de distribuição, inaugurado no ano passado, construído com um empréstimo do BNDES.
É a inovação, no entanto, que permitiu à empresa alcançar resultados parrudos e constantes. A rede tem 700 produtos com a marca PanVel, como escovas de dente, desodorantes, lenços de papel e maquiagem. Há até mesmo perfumes inspirados em marcas americanas, como Victoria’s Secret. Eles já representam 18% do faturamento da rede, com dois efeitos importantes: o aumento da fidelização dos clientes e margens maiores. Para a PanVel, a marca própria rende seis pontos percentuais de margem acima da média dos itens de higiene e beleza de outras marcas.
Lição: Fortaleça a sua marca
A criação de uma marca própria aumentou a fidelidade às lojas da rede. Hoje, esses produtos respondem por 18% do faturamento.
Hapvida (Fortaleza, CE)
Operadora de Seguro-Saúde
Faturamento em 2014:R$ 2,5 bilhões
Estimativa de crescimento em 2015:20%
Funcionários: 15 mil
Onde atua: Norte (AM e PA) e todo o Nordeste
Verticalizada e tecnológica
Uma em cada cinco pessoas do Norte e Nordeste do país, com seguro-saúde privado, é cliente do Hapvida. Para destronar grandes grupos , como Bradesco Saúde e SulAmérica, na região, a empresa tem um atrativo imbatível – o preço baixo. Foi assim que faturou R$ 2,5 bilhões em 2014 e espera crescer 20% este ano.
Embora com clientes de todos os níveis de renda, o foco do Hapvida é quem, até poucos anos atrás, não tinha dinheiro para pagar um plano de saúde privado. Na área dos planos corporativos, o preço também é um atrativo a mais em tempos de crise. Como as companhias precisam apertar o cinto, é nessa hora que o Hapvida avança sobre as concorrentes, oferecendo pacotes mais em conta.
A empresa só consegue ser tão competitiva por ter custos enxutos, graças à verticalização e à tecnologia de ponta. Assim, dos exames à internação, tudo é feito dentro de casa, tendência em que a empresa mergulhou há 15 anos e hoje é adotada por 40% dos planos de saúde do país. “Eles evitam gastos desnecessários”, diz Furquim, do Insper. “A racionalização do uso desses equipamentos e da mão de obra reduz os custos do sistema.”
A verticalização, porém, já vitimou vários concorrentes no passado. “O perigo é entrar em áreas que fogem do negócio essencial, sem gestão adequada”, afirma Tales Andreassi, professor de empreendedorismo da Fundação Getulio Vargas. “Mas se a companhia verticalizar em segmentos de alto valor agregado e com processos difíceis de replicar, a tendência é ter um diferencial competitivo.”
Para evitar a armadilha da verticalização sem controles, o Hapvida aposta no diferencial da tecnologia. Todos os clientes, por exemplo, têm as digitais cadastradas por biometria para evitar fraudes e facilitar o monitoramento dos procedimentos. Além disso, tudo o que acontece nos 21 hospitais, 70 clínicas, 49 laboratórios, 55 centros de diagnóstico e 13 prontos atendimentos, é acompanhado em tempo real por uma equipe de 30 pessoas, que trabalha 24 horas por dia. “Assim é possível identificar desperdícios de tempo, de material ou de mão de obra”, diz Jorge Pinheiro, médico e presidente da rede.
Outro exemplo recente de redução de custos pelo uso da tecnologia foi a criação de um sistema para armazenar digitalmente todos os exames de imagem. Os médicos analisam e produzem laudos em qualquer lugar, inclusive de casa. Para garantir o menor preço, o Hapvida promove uma espécie de leilão reverso, no qual os profissionais dizem seu preço, por cada análise. Quem oferecer o menor valor, presta o serviço. O processo em si gera economia de mão de obra e transporte (já que nem o médico nem os exames precisam ser deslocados). Economiza-se também porque, ao digitalizar os exames, sua impressão em película ou filme torna-se desnecessária. Segundo Tarciso Machado, que comanda a área de TI da empresa, essas ações permitiram a redução dos custos com exames em 22%.
Lição: Faça como os grandes
O investimento pesado em tecnologia e em uma rede própria de atendimento trouxe um alto nível de eficiência para a operação.
Piracanjuba (Bela Vista de Goiás, GO)
Laticínio
Faturamento em 2014:R$ 2,1 bilhões
Estimativa de crescimento em 2015:20%
Funcionários: 2 mil
Onde atua: todo o território nacional
Primeiro a marca,
depois a diversificação
Relevância foi algo que a Piracanjuba (antiga Laticínios Bela Vista) levou décadas para construir. Fundada em 1955 como uma fábrica de queijo e manteiga, a empresa foi comprada em 1974 por Saladi Helou, um contador que deixou a cidade de São Paulo para apostar no ramo de laticínios. “Decidimos que, para sobreviver, a empresa tinha de crescer”, conta César Helou, filho de Saladi, que assumiu a empresa ao lado do irmão Marcos, em 1984. Até ali, a produção do laticínio era vendida apenas em Brasília e Goiânia. Os irmãos queriam vender em outros estados, mas não tinham uma marca forte para concorrer com os grandes.
Foi quando perceberam uma brecha nas disputadas redes varejistas: a abertura econômica trazida pelo governo Fernando Collor colocaria nas gôndolas importados de boa qualidade e preço acessível. As grandes redes resolveram investir na fabricação de produtos com marca própria para evitar que os importados tomassem espaço da indústria nacional. “Entramos nessa onda, fabricando queijo e manteiga para o Carrefour, o Walmart e o Pão de Açúcar, e aprendendo a fazer logística para o país inteiro”, diz César Helou. A estratégia tornou a empresa reconhecida entre os varejistas pela qualidade. A Laticínios Bela Vista, no entanto, continuava desconhecida do consumidor final.
Quando os supermercados começaram a usar seu poder para barganhar preços além da conta, os Helou perceberam que era hora de mudar. “Queriam qualidade com preço baixo, uma equação que não fecha”, diz Helou. Durante um ano e meio César e Marcos prepararam a companhia para a mudança, reestruturando a parte comercial. As vendas às grandes redes respondiam por 65% do faturamento. Os irmãos também traçaram um plano de crescimento de longo prazo, que contemplava investimentos em marketing para tornar a marca Piracanjuba conhecida em inovação. A empresa lançou as primeiras versões no mercado brasileiro de leite, creme de leite e leite condensado sem lactose. Investiram ainda em uma nova fábrica em Minas Gerais, perto dos fornecedores.
Hoje, a Piracanjuba é o quinto maior laticínio do país. Vende para varejistas de todos os estados e dá preferência para os pequenos e médios. “É ruim ser dependente das grandes redes”, afirma Helou. “Prefiro vender cem carretas para cem clientes a vender cem carretas para um só.” Ele espera que o faturamento da empresa em 2015 chegue a R$ 2,5 bilhões, com aumento de 20% sobre o ano anterior. O crescimento se dará pela diversificação, já que o processamento de leite crescerá só 5%. “Lançamos itens mais caros, como achocolatados e bebidas com cereais”, diz.
Lição: pense a longo prazo
A empresa passou anos fabricando produtos para outras empresas, teve sua qualidade reconhecida e, a partir daí, fortaleceu sua marca e pôde se lançar no mercado varejista.
Super Nosso (Belo Horizonte, MG)
Rede de varejo e atacado
Faturamento em 2014:R$ 1,75 bilhão
Estimativa de crescimento em 2015:15%
Funcionários: 8 mil
Onde atua: Minas Gerais
Para cada nicho, uma marca
Há redes de supermercado que só vendem para os muito ricos. Da comunicação nas lojas aos produtos sofisticados, tudo passa a ideia de exclusivo e feito para pessoas especiais. Há também as redes populares, em que o apelo é, sobretudo, o preço baixo. Em Belo Horizonte, o grupo Super Nosso resolveu atacar nos dois fronts, com focos bem claros: a rede com o nome Super Nosso atende os públicos A e B e o “atacarejo” Apoio Mineiro os pequenos comerciantes e consumidores das classes B e C.
Fundada em 1940 pelo imigrante libanês Fuad Elias Nejm, como um pequeno armazém, o grupo Super Nosso tornou-se atacadista e, em 1998, retornou ao varejo. Para ter uma operação mais rentável, Euler Fuad, filho de Nejm, optou por vender para os ricos. Assim, poderia oferecer itens com margem maior, ao mesmo tempo em que evitava a concorrência das grandes redes nacionais.
Entre os cerca de mil rótulos de vinhos e azeites importados com exclusividade, o Super Nosso começou também a fabricar produtos próprios. Se, em um primeiro momento, pães e frios eram fabricados nas lojas, no ano passado Fuad investiu R$ 30 milhões na construção de uma indústria que centralizou essa produção. Assim, liberou espaço e funcionários, ambos preciosos em uma operação de varejo. “Com as novas tecnologias, a produção ficou mais ágil e alguns prazos de validade se estenderam em quase 30 dias”, afirma.
Já o Apoio Mineiro, com 12 lojas em Belo Horizonte e arredores, permitiu que Fuad se aproximasse de grandes fornecedores, como Johnson & Johnson e Colgate. Assim, ele entrou também em áreas como distribuição e logística, com duas empresas que fornecem produtos de higiene e beleza para outros varejistas. Esse negócio corresponde a 25% da receita do grupo, que no ano passado atingiu R$ 1,75 bilhão. A perspectiva para 2015 é chegar a um faturamento de R$ 2 bilhões.
Em 2014, o Super Nosso lançou seu e-commerce, em que vende alimentos perecíveis. A operação tem crescido 12% ao mês e fatura o correspondente a uma loja – no entanto, ainda não dá lucro. A expectativa de Fuad é que as vendas comecem a superar os custos com a plataforma online e a infraestrutura, a partir do ano que vem. “Os varejistas, em geral, precisam ter presença na internet”, afirma o consultor Márcio Roldão. “A tendência é que o consumidor migre para o online.” Segundo ele, há uma peculiaridade nas empresas regionais que torna a entrada no e-commerce um diferencial competitivo. “É, acima de tudo, um investimento na marca”, diz Roldão. “Em Belo Horizonte, as maiores varejistas ainda não têm presença forte na web e, portanto, há espaço para uma rede menor se solidificar.”
Em 2015, a novidade da companhia foi o lançamento do Momento Super Nosso, versão compacta do supermercado, com área entre 600 e mil metros quadrados (o tradicional ocupa entre 2 mil e 3 mil metros quadrados), como o Minuto Pão de Açúcar. O plano é abrir 30 unidades desse formato até 2017. Também devem ser inauguradas seis lojas do atacado Apoio Mineiro. Por enquanto, a expansão da empresa ficará restrita ao interior de Minas Gerais. “Só queremos entrar em mercados em que teremos participação relevante”, diz Fuad.
Lição: Busque um novo nicho
Voltar-se para o público A e B permitiu à empresa ampliar a margem de lucro e reduzir a competição direta com grandes redes nacionais.
Fonte: Época Negócios