Um perito que viu de perto tragédias recentes da aviação em vários países diz que a falta de preparação é o “calcanhar de aquiles” do Brasil. Carlos Eduardo Palhares, coordenador do grupo de identificação de vítimas da Interpol (a polícia internacional), afirma que equipes de socorro e perícia do país não estão prontas para atuar juntas após desastres.
Ao G1, em sua primeira entrevista após retornar do trabalho na Ucrânia e na Holanda, onde analisou os corpos do avião abatido por um míssil no ano passado, deixando 298 mortos, o perito criminal brasileiro disse que o problema no país é cultural.
“O Brasil não tem uma cultura de treinar para uma situação de desastre. Este é o nosso calcanhar de aquiles. Se espera acontecer para pensar no que vai fazer”, afirmou. “Eu vi isso em todas as grandes tragédias: enquanto o pessoal já devia estar se mobilizando, ficam se digladiando para saber quem vai fazer o que, quem vai coordenar.”
“A cultura brasileira não é uma cultura que favoreça uma ação adequada de integração entre todas as forças no momento da tragédia, principalmente no contexto em que faço parte”, diz.
Segundo Palhares, falta integração entre todas as instituições que atuam no momento de uma grande tragédia, como Corpo de Bombeiros, equipes de resgate, policiais e peritos. “Cada instituição tem seu plano de ação, e o processo de identificação de corpos é discutido caso a caso.”
O perito afirmou ainda que a prioridade deve ser o atendimento aos feridos, mas as equipes não podem se esquecer da perícia, que, além de confirmar quem são as vítimas, trabalha para entender as causas do acidente.
Durante a Copa do Mundo, a atuação em conjunto funcionou, reconheceu Palhares. “Realizamos uma mobilização nos estados-sede dos jogos para preparar equipes para um eventual desastre. Mas, via de regra, os grupos não estão preparados para trabalhar juntos.”
Acidentes
Palhares, que tem 39 anos, já analisou corpos nas maiores tragédias brasileiras, entre elas os acidentes envolvendo um avião da TAM no aeroporto de Congonhas, em SP, em 2007, e também da Air France, que caiu no Oceano Atlântico em 2009 deixando 228 mortos. Ele também participou da confirmação de que o candidato presidencial Eduardo Campos morreu em um avião que se despedaçou em Santos (SP), às vésperas das eleições de 2014.
“Nem todo o dia tem desastre, mas a Defesa Civil, por exemplo, está se preparando e prevenindo que algo ocorra. A mesma coisa deveria ser nas outras áreas. Temos que ter gente se preparando para o pior”, explicou.
Em 2014, ele trabalhou na Ucrânia e na Holanda em um comitê acionado para confirmar a identidade das vítimas do voo MH17 da Malasya Airlines, derrubado em meio ao conflito ucraniano.
“Os corpos das vítimas do voo abatido apresentavam diferentes níveis de traumas e com fragmentos do avião, mas a maioria estava inteiro mesmo, porque o avião se desmontou no ar e os corpos foram caindo. As pessoas que moravam próximo relataram que houve uma chuva de corpos. Fizemos um croqui (um modelo) da aeronave posicionando os passageiros identificados conforme os bilhetes comprados e, de fato, percebeu-se que os se fragmentaram mais estavam mais perto de onde o míssil atingiu”, relembrou.
Metodologia de identificação
Carlos Eduardo Palhares começou a carreira como cirurgião-dentista até decidir prestar concurso para perito da Polícia Federal em 2004, especializando-se na identificação de pessoas pela arcada dentária. Em 2014, ele passou a coordenar o grupo de identificação de vítimas da Interpol.
A polícia internacional é acionada para atuar em tragédias quando há vários países envolvidos, o que poderia gerar questionamentos sobre a metodologia adotada por uma nação para a confirmação da identidade das vítimas. A organização usa três métodos para a identificação técnica: a impressão digital, pela papiloscopia; a arcada dentária e o DNA.
Em geral, basta um deles para a confirmação. “Quando o corpo não tem mão ou você não tem um banco de dados com as impressões digitais, a papiloscopia não vai servir, e você pode empregar a odontologia, desde que a pessoa tenha feito um tratamento odontológico e se consiga obter com o dentista os dados. Mas, para isso, é preciso ter a cabeça e a arcada dentária”, explicou o perito.
Quando 242 pessoas morreram asfixiadas em um incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), a identificação dos jovens foi rápida, contou Palhares, porque a maioria portava documentos, e o Brasil possui um banco de dados centralizado das digitais da população.
Quando se tem apenas fragmentos das vítimas, a solução é o DNA, que não aponta a identificação da pessoa, mas apenas o sexo e de quem ela é filha, o que pode representar um problema em alguns casos, diz o perito criminal. A análise das vestes e informações médicas, como fraturas, cicatrizes de cirurgia e tatuagem, também são consideradas como elementos acessórios na identificação de vítimas.
“O DNA não fala quem é a pessoa, mas mostra o vínculo de parentesco com alguém”, afirmou o perito, que atua como diretor da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais.
Acidente da TAM e Eduardo Campos
No acidente com um Airbus da TAM, em 2007, o DNA foi o modelo usado, mas é mais demorado. A identificação dos corpos dos passageiros do voo da Air France teve critérios diferenciados, porque foram recolhidos em duas fases distintas: parte, logo após a queda do avião, em 2009, pode ser identificada pela digital e arcada dentária. O restante, retirado com os destroços quando a aeronave foi encontrada, teve também a identidade confirmada por DNA.
Já na queda do Cessna que levava o candidato presidencial Eduardo Campos e alguns assessores, em agosto de 2014, a perícia científica de São Paulo conseguiu ter as respostas pela impressão digital, mas também houve o uso do DNA para confirmação, diz Palhares.
As grandes tragédias serviram de base para a Polícia Federal criar um curso e um grupo específico voltado para a identificação de vítimas em momentos de crise, em que há pressões de vários tipos e dificuldades no terreno, explica o perito, que participará, na próxima semana, de uma conferência em Brasília na qual relatará suas experiências.
Fonte: Tahiane Stochero Do G1, em São Paulo